A inconstitucionalidade da jurisprudência do «trato sucessivo» nos crimes sexuais

1. A violência sexual no Mundo e em Portugal – suas características e impacto sobre as vítimas

Na conjuntura histórica actual, a violência sexual é considerada pela Organização Mundial de Saúde um problema global, no sentido geográfico, porque se verifica em todos os países do mundo, e um problema global, no sentido demográfico, porque todos os estratos sociais e pessoas de ambos os sexos e de todas as idades são por ela afectadas, a uma escala absolutamente pandémica.

Também é um grave problema de violação de direitos humanos, face às sequelas da violência sexual, na saúde física e mental das suas vítimas, o que envolve gravíssimos prejuízos pessoais para estas e suas famílias, enormes custos de saúde pública e custos sociais e económicos de outra natureza, mas de grande importância.

Os estudos etiológicos e epidemiológicos sobre violência sexual que vêm sendo realizados, em todo o Mundo, pela medicina, pela sociologia, pela psicologia, pela psiquiatria e até pela neurociência, sobretudo, a partir da década de oitenta do século XX, vêm constatando uma série de evidências que, depois de ultrapassadas algumas dificuldades metodológicas, oferecem consenso e suficiente rigor científico para permitirem generalizar várias conclusões.

A primeira dessas conclusões é a de que há uma acentuada tendência de género, na violência sexual no mundo, sendo as meninas, as adolescentes e as mulheres, a esmagadora maioria das pessoas que a sofrem e os homens, a esmagadora maioria das pessoas que a praticam.

Outra conclusão muito relevante é a de que, na infância e na adolescência, os pais, os padrastos, os avós, outros familiares, ou pessoas próximas, amigos da família e conhecidos das vítimas integram a maior parte dos abusadores, sendo que, na idade adulta, a violência sexual intrafamiliar praticada pelo marido, companheiro, ou parceiro íntimo representa uma importante parcela dos crimes sexuais praticados em todo o mundo.